As sacerdotisas do culto à Dangbeno reino de Uidá


LARANJEIRA, Lia Dias. As sacerdotisas do culto à Dangbeno reino de Uidá: um estudo da literatura de viagem europeia (século XVIII). Métis (UCS), v. 10, p. 99-116, 2011.

A autora do texto é professora do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB) e é pesquisadora de culturas afro-brasileiras e africanas, sobretudo de aspectos religiosos africanos na Costa da Mina sobre as quais também traçou sua caminhada acadêmica do doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), do mestrado em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do bacharelado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela mesma Instituição, sempre considerando as contribuições antropológicas no âmbito da história, da arte e da cultura. 

O artigo é um recorte dos estudos realizados durante o doutorado sobre parte da narrativa de três viajantes europeus do século XVIII, nomeadamente, o holandês Bosman e os franceses Des Marchais e Labat quando no Reino de Uidá, e impressionados com o rito iniciático feminino envolvendo o chamado mito de Dangbe.

partir dessa literatura de viagem de cartógrafos, navegadores, missionários e mercadores, fora construída uma de muitas representações sobre os modos de vida no Golfo do Benim ou Costa dos Escravos. No caso observado em Uidá, a prática do culto à serpente, Dangbe, é uma das manifestações religiosas de logo repreendida pelos europeus crentes em algum tipo de cristianismo que convoca a imagem da serpente associada ao maniqueísmo do mal em relação ao bem registado em Sagradas Escrituras

Dangbe seria, então, a deidade à qual se deve o culto, oferendas, respeito. Para ela, as meninas e mulheres do reino em suas iniciações ao sacerdócio. Sim, as mulheres em espaços de poder no âmbito material e espiritual, refletindo seu papel nessa sociedade em que deveriam seus maridos estarem curvados em seu respeito, e isso também é pontuado com espanto dada a prerrogativa da subserviência das mulheres na cultura religiosa europeia majoritariamente vigente. 

Entretanto, apesar de a ideia de gênero ser distinta na organização social do Reino, essa insígnia do poder concedida pela iniciação para o sacerdócio de jovens e adultas inquietava, sobretudo os maridos com o temor ao seu status de servidão dados os privilégios da sacerdotisa descrita como arrogante e prepotente. Vale pontuar que esse processo, apesar da tentativa, não deveria ser associado, como foi sugeridocomo parte da dita devassidão dos povos das Américas e da África baseada na ideia de pecado com substância cristã. O fato é que essa ameaça aos homens, que não queriam seguir essa tradição gerasse empreitadas para sua ruptura tanto com as jovens que saíam da casa dos seus pais quanto às que estavam em situação marital, ambas para se casarem com o seu “Deus”, afinal passavam a ser vodunsi, a esposa e vodun.

Com créditos às narrativas míticas, tal ritual remonta um complexo sistema de iniciação em respeito e em ligação de renascimento para servir ao vodun da SerpenteDangbe. O ritual mais complexo, segundo (BOSMAN, 1705; DES MARCHAIS, 1724-1726; LABAT, 1730). Seria, então, morrer e nascer novamenteO indicador de tempo era a época da semeadura do milho e do painço quando essas mulheres eram tomadas pelo furor santo e religioso, uma possessão, uma dada loucura que as punha a correr, gritando pela rua incorporadas: era, então, preciso levá-las ao bairro distante já destinado para realizar o processo iniciático junto às sacerdotisas. 

Na casa, com essas mais velhassem a presença de homensas belas moças eram recolhidas para serem consagradas em um buraco com mais de uma sacerdotisa para receber o toque da serpente, a picada da tarântula (tarantismosimilar ao que já ocorria na Europa, como estudou Ernesto De Martinopara ao se referir a rituais pagãos no sul do país), escarificações, manifestadas por espíritos em dança, música, teriam, em narrativa, a introdução da própria serpente em suas genitálias - como explicar ética e estética sem pensar na ideia de abuso? -, marcando esse novo nascimento envolvido, inclusive da realização deliberada de atividades supostamente masculinas dentro de suas vestes. Um okay para a referênciadionísica, mas, pelo corpo-espírito de um África, o movimento é de má magia, feitiçaria nessas casas das bruxas. Aqui, o relato europeu da perversão de mulheres no momento das cerimônias, conveniente falar de abuso? Um tipo de misoginia, machismo? Estariam as mulheres usando esses subterfúgios para sair das suas relaçõesPoderia haver pagamento pelo trabalho iniciático pela manutenção e saída desses corpos e espíritos neófitos, acusadas de enganação, de operar políticas de controle, teria mesmo a filha do Rei de Uidá sua propina paga para encurtar o seu renascimento? Nessa sociedade, não poderia haver circulação econômica na dinâmica ligada à religiosidade?

Ocorre que, tomados também por valores outros, mesmo sob pena, homens tentavam livrar-se de suas mulheres em furor para o tráfico para evitar sua servidão em detrimento da delas. Rupturas de tradições, coadunando com o ideal de adestramento, controle, comércio, mercadoria, capital, pois, não esqueçamos que são óticas europeias. Em todo mais, em território, cada um com seus ídolos, para eles, Dangbe, afinal, não estariam esses europeus também, mesmo que assombrados, sob esse encanto?

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