O QUE HÁ DE DAOMÉ EM A MULHER REI E O INVERSO?

 


 

Daomé é um pote perfurado, o rei é a água neste pote, como água que deveria ficar no pote, mas para isso ocorrer deve haver um grupo de pessoas dispostas a colocar seus dedos nos buracos para manter a água ali.

 

Isaac Adeagbo Akinjogbin (1967)

 

A epígrafe seria, em larga compreensão, uma referência coletada da tradição oral, descrevendo as formas inaugurais do estabelecimento de um novo Estado, partindo da saída de Dobagri-Donu de Aladá para organizar outra sociedade na altura do Golfo do Benin, que passava a acolher também refugiados de guerra de regiões próximas e da própria Costa, por onde eram enviadas as pessoas em processo de transação comercial, como pontuou Elisée Soumonni (2001)[1]. Então, o reino sendo o pote perfurado, a água sendo o rei e os grupos de pessoas sustentando a força ali contida era a imagem da fundação de Daomé, atual República do Benin, de modo a garantir um tipo de devoção ao rei, que deveria ter o seu reinado mantido com pagamento de tributos: esses formam os termos da metáfora trazida pelo historiador e escritor nigeriano Akinjogbin em seu livro chamado O reino Daomé e seus vizinhos (1967)[2].

O que se sabe da história, a partir de fontes como as de Alberto Costa e Silva (2002), é que o rei do Daomé, entre 1650 e 1680, Huegbadja havia estabelecido o pagamento de tributos a partir da produção dos seus súditos sejam em serviços, em animais, em cereais, em tecidos.

Foi sobre esse suntuoso reino que Hollywood propôs a produção de um longa metragem intitulado A mulher Rei[3]. Trata-se de uma produção estadunidense dirigida por Gina Prince-Bythewood com o roteiro de Dana Stevens. O filme foi lançado em 2022 pelos estúdios da Sony Pictures Releasing. Com a ênfase na atuação de Viola Davis, que interpreta Nanisca, a comandante do exército feminino do rei chamado de Agojie, uma força que servia ao rei Guezo e era militar composta por mulheres, chegando a uma média de 8.000 guerreiras, tendo em vista a queda da de homens na batalha contra reinos e impérios vizinhos como foi o caso de Oyo ao qual devia cativos, que também estava na rota do sistema-mundo, nos termos de Fernand Braudel, do comércio de escravos[4]. Na película, sugere-se uma culpabilização do Obá (rei) de Oyo pelo contato com os europeus e corresponsabilizando pelo tráfico negreiro, quando associado aos mercadores europeus para tornar os escravos, como categoria social e material, com a intenção do comércio regular para alimentar as atrocidades cometidas contra esses sujeitos num Novo Mundo nos ido de 1600 a 1800 no caso do tráfico transatlântico.

Então, uma produção cinematográfica de milhões, com dados detalhes ali pagos, a representação continua sendo, em alguns graus, da responsabilização dos africanos pela manutenção da colonização e pelo tráfico de escravos: agentes da escravização como foi ressaltada nas participações sobre o Império de Oyo,  - e a yorubalândia - , ou que alimenta uma invenção de África-ficção com as imagens a partir dos relatos dos colonizadores como as “Amazonas de Daomé”, esposas do rei, conforme definição dos europeus ali adentrados, as cerimônias que envolvem máscaras, a ambientação quente dos recortes do filme, poliginia, os ritos de passagem envolvendo discursos sobre um exotismo, nas palavras de Valentin Ives Mubimbe[5], daí, a importância da recorrência também aos arquivos para evitar anacronismos e reforços de estereótipos negativos sobre o Continente.

No drama, Nanisca tem guerras externas e internas: aquela é contra os povos vizinhos rivais que tentavam escravizar pessoas de reino também contra os colonizadores franceses, entretanto, esta última era a que assombrava acordada e em sonho e dizia respeito a uma “fera”, que, mais tarde foi ceifada oniricamente pela admissão de um contato metafórico interétnico[6] entre o Daomé e Oyo quando foi abandonada uma criança fruto de uma violenta relação carnal entre ela e um homem de Oyo.

Essa criança foi supostamente abandonada na floresta pela sacerdotisa Amenza (Sheila Atim), que acompanhou Nanisca no parto. Nawi, interpretada por Thuso Mbedu, a filha “perdida” acabou sendo criada por uma família daomeana. Chegada uma determinada idade, aparentemente, muito jovem, seus pais arranjaram um casamento para ela, que reagiu “mal” à violência com que foi tratada ali na cena em que foi jogada no chão, registrando uma forma de tradição como atávica, como se não houvesse, muitas vezes, um sentido para os casamentos serem conduzidos como alianças sociais e econômicas, bem como de forma a respeitar a linhagem, como no caso da matrilinearidade. Evidentemente, não estamos em defesa de qualquer tipo de violência seja ela qual for, mas enquanto pesquisadores, tentamos entender tais práticas que envolviam um valor ético para aquela sociedade.

Neste ponto, vale ressaltar que as relações de gênero seriam distintas não só no Daomé oitocentista. A socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí[7] estuda a relação de gênero relacionada ao aspecto do poder no papel dos homens e das mulheres na divisão do trabalho ou linhageira, por exemplo. Não à toa há a figura do pagamento do dote à família da noiva, já que uma força de trabalho estava sendo levada, porém não havia um valor comercial nisso, mas um valor simbólico que envolviam os presentes ofertados.

Entretanto, no filme, Nawi negou-se a seguir esse caminho e seus pais a entregaram para que se casasse com o reino, preferia a morte à submissão; e, assim, foi incorporada às forças militares das Agoji. Para tal, passou por exaustivos e complexos treinamentos, com sexualidade reprimida, o que indicaria força e mesmo masculinidade para os que assim julgam a associação. Muitas vezes, foi chamada por Izoguie (Lashana Lynch) de tsé-tsé, a mosca que causa a doença do sono nos humanos e morte aos não nativos cavalos, por exemplo. Era uma mosquinha astuciosa que poderia ser uma ameaça ao Império de Oyo com a referência à importância desses animais junto às armas de fogo que levaram Oyo a muito longe: eram inimigos com fraquezas conhecidas. Essa pode ser uma leitura em se tratando do sentido épico do filme baseado nos feitos do reino do Daomé.

Quanto à leitura histórica, o momento era a da ascensão do rei Guezo (no fimle, Joah Boyega), que permaneceu no poder de 1818 a 1858, na luta pela manutenção do reino e na proteção dos avanços do Império de Oyo, do qual se livrou de pagar impostos. Historicamente, a assunção do rei deu-se por um golpe de estado encorajado por Francisço Félix de Sousa, Xaxá, o traficante de escravos brasileiro. Então, o meio-irmão de Guezo, Adandozan[8], foi impedido de continuar a linha do poder, já que uma consulta oracular teria assim orientado. Sobre este, Nicolau Paráes (2013)[9] ressalta que ele foi destronado em 1818 e os registros sobre esses fatos ainda são um mistério que constantemente corria pela tradição oral, também importante fonte, mas como um imaginário de um rei cruel e violento.

Nas relações que tinham com Oyo, ora conflitos, ora acordos de paz entre eles, foi relatado por colonizadores europeus como selvageria sem motivos, envolvendo decapitações, assassinatos. Era preciso salvar os daomeanos de si mesmos para que eles servissem à agência colonial, inclusive no mundo atlântico, de modo a expandir o tráfico de escravos a exportação de seres humanos como mercadorias de um Daomé com franco contato com escravocratas, sobretudo brasileiros. Vale ressaltar que tudo funcionava com base em tratados comerciais nessa parte da África Ocidental, e há confirmações documentadas sobre isso como indica antropólogo Nicolau Paráes (2013), no estudo de cartas do Daomé enviadas à Portugal e ao Brasil, na identificação de diversas informações sobre a dinâmica do tráfico transatlântico, das guerras internas, do contato com os portugueses de lá.

Essa forma de lidar com o poder desmantelou as relações internas e houve o questionamento, também retratado no filme, quanto as vantagens do tráfico de cativos para a escravidão o escoamento dos prisioneiros[10]. Externamente, também houve a pressão inglesa para que a abolição fosse efetivada. Aqui, houve, então, a investida na exportação de óleo de dendê, atribuindo um caráter sagrado à sua árvore, portanto, produto sacro produzido pelos povos dos quais era cobrado imposto; a ideia do vaso daomeano aqui permanece. Sem cessar o tráfico, diga-se, sem ser de passagem, tendo passado por uma chamada “crise de adaptação”, conforme ressalta Soumonni (2001). E o porto de Uidá permanecia ativo. 

Na produção Hollywoodiana, não houve trégua para as Agoji: seja na luta, com fogo, contra os povos de Oyo ou na resistência anticolonial. Quanto à empreitada anticolonial, o que havia era um adversário em comum: os europeus, como disse Nanisca, sugerindo uma pretensa “Unidade Africana”.

Crendo também nisso, numa unidade também entre os vivos e os ancestrais, Nanisca realiza oferenda aos ancestrais determinada pelo oráculo para poder resolver todos os conflitos. Tendo isso resolvido, todo o mais foi conquistado, inclusive o recebimento do título de Mulher Rei em cerimônia própria: a general do reino do Daomé.

Apesar das imprecisões do filme e de uma dada romantização, há uma importância da sua circulação quando traz para essa mídia essas faces de grandiosidades das sociedades africanas para um público pouco habituado na recepção desse tipo de imagem da África enquanto continente.

Então, o melodrama tem fim com o encontro feliz entre mãe e filha numa emocionante e comemorativa festa em que dançam juntas com as guerreiras naquele momento de glória reparadora. Assim termina o filme com a manutenção da supremacia de Daomé.

O começo da história a partir daí, coube e às forças colonizadoras francesas decidir sobe essas questões elementares para os rumos do território colonizado, então, de que elemento estaria cheio o vaso de Daomé? Estaria o vaso vazio? Ou melhor, do que estaria cheio?


                                                                                                 Autoria: Eumara Maciel dos Santos

[1] SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo atlântico. Amsterdã/SEPHIS e Brasil/CEAA, 2001.

[2] AKINJOGBIN, Isaac Adeagbo. O reino Daomé e seus vizinhos (1967).

[3] A Mulher Rei. Direção Gina Prince-Bythewood. TrisStar Pictures, 2022. 2:22 h.

[4] BRAUDEL, Fernand. Reflexões sobre a história. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

[5] MUDIMBE, Valentim. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2019 – Introdução e capítulo 1.

[6] É preciso estar atento à utilização do termo etnia, haja vista que, nesses contextos colonizados pela Europa, a palavra foi largamente usada depreciar as organizações sociais encontradas. Para maiores informações, ver AMSELLE, J. L; M’BOKOLO, E. (Orgs.). No centro da etnia: Etnias, tribalismo e Estado na África. RJ, Brasil, 2017.

[7] OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução Wanderson Flor do Nascimento. 1a. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

[8] O que poderia ser o trono do rei Adondozan estava exposto no Museu Nacional aqui no Brasil.; teria sido um “presente” ao Príncipe Regente D. João VI.

[9] PARÉS, Luis Nicolau. Cartas do Dahomé, Afro-Ásia, Salvador, n. 47, 2013.

[10] COSTA E SILVA, Alberto. A manilha e o libambo: A África e a escravidão de 1500 à 1700. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ Fundação Biblioteca Nacional. 2002.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

“Escrever o poder”

DE COMO E POR QUE QUERER CONQUISTAR O MUNDO EM SISTEMAS