“Escrever o poder”



SANTOS, Catarina Madeira. Escrever o poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu, Revista de História, [S.l.], n. 155, p. 81-95, 2006.

 

O artigo intitulado Escrever o poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu é da autoria de Catarina Madeira Santos, que é pesquisadora vinculada ao Centro de História de Além-Mar (Universidade de Lisboa) e à École des Hautes Études enSciences Sociales (Paris, França), e desenvolve pesquisas na área da História e da Antropologia com ênfase em contextos imperiais, cidades coloniais e arquivos, predominantemente,africanos. 

Com fins na apresentação no Annual Meeting of theSociety for Spanish and Portuguese Historical Studies(Universty of New York), em 2000, o texto foi produzido, tendo sido levado, em 2003, ao Centre for Modern Oriental Studies (Berlim, Alemanha) como parte da programação do Inernational Symposium Angola on the Move: TransportRoutes, Comminications and History, portanto, uma sólida pesquisa amplamente compartilhada acerca do uso da escrita e sua ligação com a própria História de Angola no que diz respeito à chamada burocracia à qual estiveram submetidas as elites africanas na dinâmica da Administração Colonial na altura das relações imperiais portuguesas.

Nesse estudo de caso com os Ndembu ou Dembos, a problemática apresentada é da relação assimétrica do binarismo entre sociedades que possuem escrita alfabética e as sociedades que não a possui - e que tem por prioridade a comunicação oral em detrimento de outros códigos grafados -, de forma óbvia, fortalecendo uma ideologia dicotômica da inferioridade e da superioridade que marca os contatos coloniais do eu (europeu) e do outro (africano). Em se tratando de Estados, seriam, então, sociedades com Estado e sociedades sem Estado o caso desse Estado africano com a Coroa Portuguesa.

Partindo das experiências das formações políticas anteriores ao século XVII, ao Norte de Angola, nomeadamente entre os Ndembu, a discussão traça como objetivo o questionamento da dicotomia estabelecida entre a ideia de cultura oral e cultura escrita para falar das sociedades hierarquicamente colocadas no processo colonial e, de maneira destacada, a apropriação do código alfabético escrito como uma das tecnologias do dito Estado burocrático das elites africanas, sobretudo, para instrumentalizar suas relações políticas, inclusive, no âmbito interno.

Há a afirmação de que, apesar de a escrita fazer parte dessas interações político-administrativas das elites africanas não só com o Estado colonial, mas com outros membros da elite interna, a historiografia associa predominantemente a oralidade, não por acaso, como basilar para os estudos dessas sociedades, mesmo que junto das fontes obtidas pela Arqueologia e pela Antropologia. Com os Ndembu não foi diferente, fato que pode representar uma perda no momento de recorrer aos dados contidos nesses documentos da memória angolana. Contra esse risco, no âmbito do uso da fonte da documentação escrita, é realizada uma análise da importância do auto de vassalagem, uma experiência já usada com a Ásia, agora, nesse contexto colonial, quando esses contratos são firmados, de maneira inicial, entre autoridades portuguesas e, a posteriori, entre as elites africanas e, em ambos os casos, os poderes são reconhecidos entre si.

A pesquisadora dividiu a discussão em três colocações: 1 – Quanto aos contratos de vassalagem, afirma que foi através dessa natureza da escrita como exercício de poder dos portugueses sobre os africanos que estes tiveram contato com o referido código e pudessem, inclusive, apropriarem-se dele; 2- Os africanos entenderam que a escrita representava uma tecnologia intelectual e poderia ser usada a seu favor sendo, então, uma continuidade da oralidade e não seu oposto e 3 –Tendo uma organização hierárquica, as elites africanas passaram a usar a escrita como símbolo do poder africano.

Livre das penas da quebra do trato, os termos de fidelidade, paz, percepção de impostos, apoio militar em casos de guerra, proteção do livre-comércio das partes firmavam um acordo escrito, que também era lido em voz alta, por exemplo, salvaguardando um documento de dupla modalidade seja quando chefes se tornavam vassalos do Rei de Portugal ou nos casos da escrita dos Ndembu e dos sobas de Benguela com eficácia da comunicação com fins no trato de assuntos políticos e administrativos. Neste caso, aí está o Trastesalio(Madeira, 2006, p.98) como exemplo dessa apropriação da língua e da cultura do outro para a (re) escrita da lógica de Carta com feitiço (Madeira, 2006, p.83) ou a cerimônia oral com o corpo envolto em pemba, a cultura da vassalidade ia sendo relida em território africano.

Para chegar a tais argumentos, a autora dialoga diretamente com Ana Paula Tavares, que é sua parceira da pesquisa que faz nascer o artigo, com Jack Goodoy (1988) sobre os efeitos sociais da escrita, com Beatriz Heintze (1997) sobre os tratados de vassalagem numa proposição de um feudalismo luso-africano. Cita, ainda, o exemplo de Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss (1955) quando o chefe Índio dos Nambikwara, para ilustrar o poder da escrita, faz o esforço para grafar um código de aproximação que gerasse a comunicação. 

Tendo funções além das diplomáticas, a escrita é poder e o poder centralizado também é africano. Por senioridade, por parentesco, pelo oral e pelo escrito, o poder das elites africanas foi exercido e legitimado. Todo esse cabedal de saberes é fonte para o estudo da História seja qual for a modalidade, a compreensão da coexistência parece ter dado a ver o caso do Ndembu.


Fichamento: Eumara Maciel 


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